Função espelho

Tirar a vida de outrem

Participante: Assassinato, suicídio são temas de difícil compreensão. O ‘Evangelho Segundo o Espiritismo’, por exemplo, deixa a impressão que alguém pode tirar a vida de outrem antes do tempo.

Em que passagem? Digo isso porque em ‘O Livro dos Espíritos’, como vimos, o texto é bem claro: Deus sabe de antemão o modo como um ser humanizado vai desencarnar.

Texto em debate, retirado de “O Evangelho Segundo o Espiritismo” de Alan Kardec, capítulo V – Bem-Aventurado os aflitos:

28. Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador. Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim?

Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até a borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar idéias diversas das que tinha? Ainda que haja chegado ao último extremo um moribundo, ninguém pode afirmar com segurança que lhe seja soado a hora derradeira. A Ciência não se terá enganado nunca em suas previsões?

Sei bem haver casos que se podem, com razão, considerar desesperadores; mas, se não há nenhuma esperança fundada de um regresso definitivo à vida e à saúde, existe a possibilidade, atestada por inúmeros exemplos, de o doente, no momento mesmo de exalar o último suspiro, reanimar-se e recobrar por alguns instantes as faculdades! Pois bem: essa hora de graça, que lhe é concedida, pode ser-lhe de grande importância. Desconheceis as reflexões que seu Espírito poderá fazer nas convulsões da agonia e quantos tormentos lhe pode poupar um relâmpago de arrependimento.

O materialista, que apenas vê o corpo e em nenhuma conta tem a alam, é inapto a compreender o que se passa no além-túmulo, conhece o valor de um último pensamento. Minorai os derradeiros sofrimentos, quanto o puderes, mas, guardai-vos de abreviar a vida, ainda que de um minuto, porque esse minuto pode evitar muitas lágrimas no futuro – S. Luís. (Paris, 1860).

Veja bem, São Luís não fala em qualquer momento no texto que alguém pode morrer antes da hora, como você dá a entender na sua pergunta. Para entendermos o que ele diz, vamos repetir a pergunta do “Evangelho Segundo o Espiritismo”: “Um homem está agonizante, presa de cruéis sofrimentos. Sabe-se que seu estado é desesperador. Será lícito pouparem-se-lhe alguns instantes de angústias, apressando-se-lhe o fim”? Como resposta a esta pergunta temos, então, a seguinte resposta: não, não é lícito poupar-se alguns instantes de vida de um moribundo.

É isto que está sendo respondido e nesta resposta não há explicitamente nenhuma afirmação de que o fim pode ser abreviado. Por isso insisto: o fim jamais será abreviado. Ou seja, quando você ‘desligar a máquina’ não abreviou fim algum: o paciente morreu na hora que tinha que morrer.

No texto que você citou, São Luís não fala em momento algum que alguém ‘sai’ antes da hora da carne. O que ele fala é que você não deve ter a intenção de abreviar o fim. Além do mais há uma informação, que, aliás, existe em muitos outros textos do evangelho, mas que é esquecida constantemente: “Quem vos daria o direito de prejulgar os desígnios de Deus? Não pode ele conduzir o homem até a borda do fosso, para daí o retirar, a fim de fazê-lo voltar a si e alimentar idéias diversas das que tinha”

Por esta informação de São Luís podemos entender que Deus está comandando todo o processo do desencarne. Sendo assim, o fim também só acontecerá com um comando por Deus. E, creia, Deus não vai se submeter aos caprichos humanos, ou seja, provocar o desencarne porque o homem resolveu desligar a máquina.

Aliás, Ele não se submeterá à própria máquina ou ao corpo físico que, pela visão humana que não leva em conta a Causa Primária de todas as coisas, agiriam por moto próprio causando o desencarne.

O fim acontece na hora que ele chega e pelo modo ou método que Deus conhecia e comandou. Isso quer dizer que se você desligar a máquina de alguém que está em coma não abreviou o fim: Deus comandou-o porquê chegou a hora e aquele tinha sido o gênero escolhido para o desencarne. É isso que está sendo dito nas entrelinhas desse texto.

Agora, a sua intenção de abreviar o fim e a sua imaginação de ter conseguido realizar tal ato, é outra coisa. Se você também achar que ele iria viver mais tempo se a máquina estivesse ligada, é outra coisa. Tudo isso é apenas imaginação, ou seja, construções racionais do ego que nada tem a ver com a Realidade. Como Krishna lhe diria: uma fantasia fantasmagórica.

Portanto, é isso que está sendo dito no texto: ninguém pode abreviar o fim. Por isso afirmo que o fim jamais poderá ocorrer em um momento diferente daquele que aconteceu. E, afirmo ainda, que ele chega dentro do gênero que Deus e o próprio espírito conheciam antes da própria encarnação.

Mas, porque cheguei a esta conclusão e você não? Porque apliquei ao presente texto um ensinamento anterior que está em “O Livro dos Espíritos” ao invés de analisá-lo com os conceitos humanos presentes no ego.

É preciso que nos lembremos sempre que o Pentateuco de Kardec é uma obra só e que, por isso, não pode ser contraditória. Além do mais, dentro da obra, “O Livro dos Espíritos” é anterior ao Evangelho e, por isso, os ensinamentos ali contidos devem servir de base para a interpretação dos textos restantes.

Veja bem. Quem compreende que neste texto São Luís quis afirmar que alguém pode desencarnar antes da hora, não conhece “O Livro dos Espíritos”. Basta apenas uma rápida olhada nas perguntas 01, 07 e 09, para compreendermos o que estou dizendo.

Na resposta a pergunta 01, a informação é de que Deus é a Causa Primária de todas as coisas. Ou seja, a origem de tudo. Ali não se fala que Ele causa primariamente algumas coisas e outras não. Sendo assim, Ele tem que ser o causador do desencarne.

Na resposta a pergunta 07, está afirmado que as propriedades dos elementos materiais não podem causar primariamente nada, pois senão, quem seria a causa destas propriedades? Sendo assim, a ação da máquina ou dos órgãos do corpo físico não podem ser o causador primário do desencarne, mas Deus é que faz isso aparentemente acontecer.

Já na resposta a pergunta 09, assim como no comentário de Kardec nesta mesma questão, encontramos que qualquer que seja a obra de uma inteligência existe sempre uma Inteligência Maior que comanda o funcionamento da menor. Sendo assim, o dedo que desliga a máquina não pode ter sido comandado por uma inteligência menor sem que a Inteligência Maior houvesse comandado anteriormente tal ação.

Agora leia de novo este texto e, com certeza, você verá que São Luís não afirma que o fim pode chegar antes da hora, mas que você deve resguardar-se da intenção de fazê-lo. Até porque essa intenção jamais chegará a termo.

Participante: Tem razão, é uma questão de interpretação...

Perfeito. Mas, para se interpretar algo não se pode fazê-lo a partir de nossos próprios conhecimentos (verdades) sem que corramos o risco de deturpar o que foi escrito.

Quando um ser humanizado interpreta um texto sagrado sem aliá-lo a conhecimentos anteriores, comete um crime, pois quer tornar-se o autor da obra, já que ‘escreve’ um livro diferente daquele que foi editado.