Atentado ao jornal Charlie Hebdo
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Atentado ao jornal Charlie Hebdo

Em 2015 o mundo ficou estarrecido com uma ação terrorista na França contra os jornalistas do Charlie Hebdo. Joaquim de Aruanda comentou esse acontecimento. 

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Não se julga o que acontece

Há 15 anos temos conversado com vocês. Ao longo desse tempo muitas coisas aconteceram no planeta, algumas com repercussão mundial. Durante esse tempo nunca nos negamos a comentar esses acontecimentos. Foi assim com os aviões que atingiram o World Trade Center, com os tsunamis que atingiram as Filipinas, com o ataque terrorista a um trem na Espanha e aquele que vitimou crianças numa escola na Rússia. Sempre comentamos esses fatos. Nunca nos negamos a falar de nada e não seria diferente agora quando o terror ataca a França.

No entanto, durante essas análise, nunca falamos de atos, fatos, acontecimentos. Sempre aproveitamos essas ocorrências para delas tirar algum ensinamento que pudesse nos ajudar no sentido da promoção da reforma íntima, do aproveitamento da encarnação. É assim que vamos também comentar agora o que acabou de acontecer na França.

Vamos falar sobre o que aconteceu, mas não analisar ou julgar atos e sim aproveitar os incidentes para extrair deles algum ensinamento para a elevação espiritual. Isso é importante ser feito, pois atrás de todo acontecimento existem sempre posturas emocionais e elas importam para a questão da elevação espiritual.

Portanto, o que vamos fazer hoje aqui é analisar algumas posturas emocionais que foram vividas nesses acontecimentos, tanto pelos que praticaram a ação, os que foram vitimados por ela e por aqueles que tiveram notícia do acontecido.

 Só mais um detalhe antes de continuarmos. Quero lembrar um ensinamento que sobre o qual já falamos há anos: não existe certo ou errado. Isso vale para tudo neste mundo, inclusive para as emoções que são vividas pelos seres humanos não. O que existe são emoções pelos quais se opta e quando isso acontece, todos que tiveram essa opção acharam que elas são certas. Toda postura emocional é uma opção de algum espírito e, por isso, não está certa nem errada.

Por isso, quando falarmos das posturas que alguns elementos envolvidos nesse acontecimento tiveram, não estamos julgando-os. O que estamos fazendo é aproveitar as vivências deles para extrair algum ensinamento que possa nos ajudar a viver a vida humana de uma forma diferente do que vive a maioria.

Então, vamos lá.

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O uso da liberdade

Toda a história desse acontecimento começou porque algumas pessoas julgaram-se no direito de falar o que quisessem. Julgaram-se no direito de se expressar do jeito que quisessem a respeito de um tema. Eles achavam que tinham o direito de falar o que quisessem, pouco importando se aquilo que diriam estava ofendendo ou magoando alguém.

Para justificar esse direito, essas pessoas – e agora a humanidade como um todo – usa o argumento da ‘liberdade de imprensa’. Ou seja, usam a liberdade de expressão como argumento para fazer o que quiserem. Mas, será que realmente a liberdade pode dar esse direito a alguém? É sobre esse aspecto que quero conversar com vocês.

O resto das coisas envolvidas neste acontecimento – os desenhos em si, as coisas que cada um dos envolvidos fez, inclusive o ato de matar ou tudo mais que tenha acontecido – é vida, é carma, é prova e missão de espíritos. Por isso, não vou analisar este aspecto. Vou me atentar a questão do direito à liberdade de usar o seu direito de sentir-se livre.

 Esse é um ponto fundamental para aqueles que querem aproveitar a encarnação, porque não podemos nos esquecer que Cristo ensinou que o resultado maior de um período de provações do espírito é alcançado quando se ama a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo. Esse é, portanto, o objetivo da vida daquele que quer aproveitar a sua encarnação,

Será que a liberdade de usar um direito indiscriminadamente está de acordo com esse amor ou o fere? Vamos ver isso.

Antes, mais um aviso. Vocês podem dizer que eu sempre falei que os seres humanizados devem viver uma liberdade irrestrita, mas essa falta de limites tem uma restrição: a sua liberdade precisa estar subordinada ao amor ao próximo. Você precisa sentir-se livre de tudo e de todos, sentir-se no direito de ser, estar e fazer o que quiser, mas, de posse dessa liberdade, precisa verificar se ela vai ferir alguém.

Digo isso porque se não observa esse preceito, se exerce o seu direito de agir ferindo propositalmente o outro em nome dessa liberdade, não amou. Se não houve amor neste momento, a sua liberdade foi fundamentada no egoísmo. Digo isso porque sempre que não existe amor há egoísmo.

 Portanto, como disse por diversas vezes, o ser humano precisa viver com liberdade irrestrita, mas, ao alcançá-la, deve usá-la com responsabilidade. Não falo da responsabilidade humana, aquela no sentido de construir ou destruir algo, mas usá-la com a responsabilidade espiritual. Essa responsabilidade consiste em usar a liberdade subordinando-a sempre ao amor.

Quando a liberdade não se transforma numa expressão do amor, no amar ao próximo como a si mesmo, mesmo sentindo-se livre, aquele que busca aproveitar a encarnação não deve viver determinadas emoções. É isso que usaremos como base para nossa conversa sobre os acontecimentos recentes na sede de uma revista em Paris.

Vamos continuar.

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Terrorismo

É fato conhecido que os editores dessa revista acharam-se livres para fazer o que quisessem. Em nome dessa liberdade, fizeram desdém e insultaram o profeta Maomé. Essa é a verdade dos fatos. Mesmo a suposta liberdade de imprensa não pode esconder o fato que as publicações dessa revista desdenharam e insultaram o profeta.

O que é o profeta Maomé para os muçulmanos? O que representa para os muçulmanos essa figura? Um santo, um mestre, uma entidade que é cultuada. O profeta Maomé é – vamos usar essa expressão, mesmo que a religião muçulmana não permita, apenas para que tenham noção da importância dele – é uma pessoa santificada.

Pois bem, pergunto: você tem coisas santas na sua vida? Claro que tem ... Tem sua mãe, seus irmãos, seus filhos, seu pai. Alguns ainda possuem dessa forma a pátria, o emprego, o carro, a casa. Enfim, você possui algumas coisas que considera como santificadas.

Pergunto: gostaria que essas coisas importantes e santificadas da sua vida fossem alvo de sarcasmo, fossem um elemento menosprezado por outras pessoas? Acho que não. Acho – e tenho certeza disso – que se uma pessoa fala mal do seu filho, da sua família, do seu pai, se sente indignado. É exatamente como se sentiram os muçulmanos com o uso da liberdade de falar o que quiser por parte dos jornalistas.

Isso é real: os jornalistas provocaram os árabes achincalhando algo que para eles é santo. Sei que vocês não compreendem isso porque aqueles que se sentiram atacados são do mal, terroristas, não prestam. Só que não foram apenas eles que se sentiram mal com as ilustrações dos jornalistas: toda uma comunidade também se sentiu assim. Podem não ter reagido com tiros, mas a comunidade da segunda religiosidade mais professada no planeta sentiu-se atacada por eles.

A comunidade islâmica como um todo sentiu-se mal com os desenhos que eram publicados nesse jornal. Isso aconteceu não só por causa da jocosidade, mas pelo fato de haver uma representação física do profeta Maomé, o que, para o Islã, é algo inadmissível – e todos aqueles que possuem um pouco mais de conhecimento sabem disso.

Todos sabem que as leis do Islã proíbem a apresentação da figura do profeta. Porque, então, esses jornalistas usou uma imagem retratando Maomé? Porque não fez suas charges ou suas piadas usando outras figuras? Ou seja, podiam ter feito tudo o que fizeram sem provocar esta ofensa aos seguidores do islamismo.

Por isso, não se trata aqui da liberdade de imprensa, de fazer o que quer, mas sim de usar de forma premeditada uma imagem que se sabe proibida tendo consciência de que esse uso irá ferir. Trata-se, portanto, de um ato de ataque consciente e premeditado.

Veja como mudou a situação: não se trata mais de um jornalista usando a sua livre expressão, mas de pessoas usando elementos para atacar premeditadamente aqueles que não gostam. Ou seja, estamos falando de terroristas e não de jornalistas usando de sua livre expressão.

Neste caso, então, o acontecimento não passou de terroristas atacando terroristas.

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A liberdade e o amor

Essa é a questão que precisa ser repensada por vocês. Precisamos acabar com a ideia de que tudo pode ser feito em nome da liberdade. Não, isso não é verdade. A liberdade possui um amplitude que pode ser vivida, mas outra que não. Como Paulo dizia: você pode fazer tudo, mas nem tudo que pode fazer é bom para você.

Você é livre para agir do jeito que quiser, mas nem toda ação que pratica é boa para você. É sobre isso que quero conversar a partir do que aconteceu em Paris. Como disse, não vou me atentar a fatos, a atos. Não vou entrar na questão do terrorista ter matado, ter feito isso ou aquilo. O que quero com esta mensagem é que pensem sobre a liberdade, sobre como usar a liberdade de vocês.

Vamos então conversar.

O que significa amar o próximo? Acima de tudo, respeitá-lo; acima de tudo, cuidar dele, ter atenção com ele.

É isso que você precisa ter em mente ao usar a sua liberdade, o seu direito de ser livre: avaliar a questão do respeito ao outro, o cuidado com o outro. Quando usa da sua prerrogativa de ser livre sem atentar-se quanto à possibilidade de ferir o outro, pode ter certeza de que não houve amor. Sem que haja respeito e atenção pelo próximo, a sua liberdade nada tem a ver com amor, mas trata-se de uma expressão do seu egoísmo.

Cuidar do outro, preocupar-se com o outro sempre ...

Apenas um detalhe. Já disse ao longo dos últimos anos de estudo que ninguém pode ferir ou magoar o outro. Na verdade são as pessoas que recebem como ferimento ou mágoa o que alguém faz a elas. Por isso, o cuidar do outro ao qual me refiro agora nada tem a ver com ação, ato, mas trata-se simplesmente não querer puni-lo. Até porque, falar, você pode falar sem a menor intenção de punir e acabar ferindo alguém.

Respeitar o próximo tem a ver com o não querer se transformar em instrumento que leve ferimento ao outro. Vou tentar dar um exemplo disso.

Uma vez disse para uma pessoa: você briga com a sua esposa? Ele disse: ‘não, é ela que briga comigo. Quando briga comigo, tento ensinar o que aprendi com você, para que ela não julgue’.

Respondi: briga sim e vou lhe dar um exemplo. A sua esposa é uma pessoa que gosta da casa arrumada. Ela quer ver todas as coisas no lugar. Não gosta de nada espalhado, jogado, não é isso? Apesar disso, quando chega em casa, você tira a blusa e joga em cima do sofá, não é? Ao fazer isso, sabe que ela sofrerá com o que fez, não?

Para justificar a sua ação, ele me disse que ela é que precisa entender que não existe lugar certo para se colocar as coisas. Eu respondi: você nunca vai ensinar isso a ela. Não é deixando a blusa fora do lugar que vai ensinar isso a ela. Na verdade, com essa justificativa mental provou que não está nem aí para ela. Por isso, não venha me dizer que pratica esse ato para ajudá-la. Na verdade, o que está fazendo é brigar com ela quando tira a blusa e joga em cima do sofá.

Essa é uma verdade. Quando premeditadamente ou sem preocupação com os outros fazemos aquilo que queremos em nome da nossa liberdade ou até em nome daquilo que acreditamos, nós estamos proporcionando uma oportunidade para que ele sofra, Esse proporcionar, portanto, nada tem a ver com amor, mesmo que o ego, a razão, diga que você está querendo ajudar o outro. Não está! O que está acontecendo é que se transformou num instrumento para que o próximo vivencie uma situação de sofrimento.

A partir desse raciocínio, vocês me perguntariam outra vez: ‘ora, Joaquim, você sempre disse que todos nós temos missão, e que ela é aquilo que fazemos com os outros. Por isso, se fiz, precisava fazer aquilo’. Sim, devia fazer, mas não precisava internamente ter essa emoção, sentimento ou sensação, de que tem o direito de fazer com o que o outro compreenda que tudo que você faz é certo também.

É a isso que estou me referindo. Largar a camisa em cima do sofá – ou não – é ato. Isso vai acontecer, pode acontecer. Agora, ao praticar essa ação, ao sentir-se livre para largar a camisa em cima do sofá, você antes precisa parar e repensar: será que eu estou fazendo isso realmente por amor? Ou será que estou querendo fazer porque acho que tenho o direito de fazer? Será que se fizer isso não vou estar contribuindo para que outra pessoa sofra?

Esse é o detalhe que nós podemos usar esse acontecimento para aprender um pouco mais na questão da elevação espiritual.

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Ocupar-se com o possível sofrimento dos outros

Aqueles que fizeram os desenhos deste jornal poderiam ter feito a caricatura de qualquer ser humano que siga a religião muçulmana para fazer a jocosidade que queriam. No entanto, eles foram atingir a toda uma comunidade usando de algo que é sagrado e santificado para eles. Mais, fizeram as figuras sabendo de antemão o que aqueles desenhos proporcionariam para que os outros viverem.

Este ponto é mesmo que abordo quando se fala de sangha. Aconteceram e acontecem problemas em todas as comunidades, mas, quando perguntado sobre esses problemas, respondo: o problema é que faltou amor.

 Sabe, as pessoas estão preocupadas em exercer a sua liberdade de falar o que querem, de serem o que quiserem, mas não estão nem um pouco preocupadas com o direito do outro não ouvir o que você quer falar, do outro de pensar diferente. É para essa questão que quero aproveitar este acontecimento e lhes alertar.

Relacionar-se com o outro vivendo a relação com amor, com liberdade, passa necessariamente pela preocupação e a ocupação em como o próximo vai receber o que você se acha no direito de falar. Passa pela preocupação e pela ocupação de ver o quanto aquilo que quer fazer ou dizer pode ferir o próximo.

Atos vão acontecer, ferimentos vão surgir, mas, se surgirem, se acontecerem, quando essa ocupação ou preocupação tiver acontecido anteriormente, já não houve uma premeditação, já não houve uma intencionalidade de ferir. Essa não-ocupação e preocupação com este detalhe mostra a intencionalidade de ferir, que está no ego, mas que você vive, mesmo dizendo que está apenas exercendo o seu direito de falar o que quiser, de fazer o que quiser.

 Sei que humanamente falando sou uma voz dissonante nos últimos acontecimentos. Milhares de pessoas ao redor do mundo se juntaram para louvar aqueles que atacaram o islamismo. Está certo, sou uma voz dissonante, mas pergunto: quantas vezes Cristo atacou os romanos? Quantas vezes Krishna atacou aqueles que eram contra o seu ensinamento? Quantas vezes Buda foi contra aqueles que não seguiam o que ele falava? Nenhuma vez.

Não fizeram isso porque amaram, e aqueles que amam não se preocupam em atacar ninguém. Eles tiveram cuidado no relacionamento com o outro para não ferir nem magoar ninguém. Claro, acabaram ferindo, magoando, com o que disseram, mas não houve essa intenção.

É a questão da intencionalidade que leva aqueles que se respaldam na sua liberdade de exercer o direito de ser, estar e fazer, sem se preocuparem ou ocuparem com o que outro pode vir a sentir que acaba com qualquer santidade, com qualquer valor de certo numa ação. O ato, como falamos, é vida, prova, missão, carma, e os envolvidos irão praticá-los e ninguém pode decretar o que vai acontecer, mas internamente é preciso estar atento ao ferimento que se possa causar ao próximo.

 Só mais um detalhe. Não sei se vocês se lembram quando, ao longo de muitas conversas, falamos em universalizar, em tornar-se universal. Eu disse: universalizar é ser um com o outro. Como você quer ser um com o outro, se não se preocupa e se ocupa com o que é importante para ele? Como quer se universalizar com alguém, se ainda coloca aquilo que você acha e julga que tem o direito de ser, estar e fazer, acima do próprio bem-estar do outro? É algo interessante para pensarmos.

Com as graças de Deus.