Choque de realidade

Seis por meia dúzia

Nestes textos falei um pouco de um sistema que utilizo comigo mesmo para não deixar o sofrimento se instalar: o choque de realidade. Ao longo destes textos, para falar da nossa existência, usei a figura de uma projeção e de uma tela. Agora uma pessoa pede que eu fale mais sobre estas figuras. Vamos lá...

O que chamei de projeção é a nossa vida humana; o que chamei de tela é aquilo que chamamos de vida espiritual. Para mim, a vida humana é uma história que é projetada na vida espiritual.

Nós, seja lá quem formos, estamos na projeção e não na tela. Na projeção existe o tudo, ou seja, todas as coisas que conhecemos, compreendemos, percebemos; na tela existe o nada, ou seja, existem elementos que não conhecemos, compreendemos ou percebemos. Esta é em síntese do que quis dizer com essa figura.

Mas, o mais importante não é saber o que é uma ou outra, mas, o que isso tem a ver com a busca da felicidade. Por isso, vou aproveitar o seu pedido e falar um pouco mais sobre isso.

Quando falei que o personagem percebe a existência da tela por detrás do cenário da projeção, não quis dizer que ele é capaz de entender a tela ou de vivê-la, mas sim que ao perceber que existe algo mais do que a projeção, o personagem procura integrar-se à tela. Veja bem se não é isso que acontece conosco: quando começamos a divisar a existência da chamada vida espiritual começamos a buscá-la.

Acontece, e isso foi o que quis ressaltar nestes textos com o tudo e o nada, buscamos essa existência como se pudéssemos ser parte integrante dela. Não podemos: somos apenas algo que se projeta sobre ela. Não temos condições de entendê-la, de compreendê-la ou de vivê-la enquanto estivermos vivendo a projeção, o tudo.

Por isso, na minha opinião é importante esvaziar-se do tudo para atingir o nada... Chamo de esvaziar a vida libertar-se do valor de certo e verdadeiro das crenças, certezas ou verdades desta vida. Quem ainda tem alguma coisa como líquida e certa não consegue chegar à tela porque ainda está preso à projeção imaginando que ela é a tela.

Algumas dessas coisas que nos prendem à tela você falou em seu e-mail: 'Nos caminhos seguros das orações, das igrejas irmanadas, dos rituais e práticas, nas metas de vida para alcançar postos, cargos, casamentos, filhos, famílias, existem as promessas e a gente acaba condicionado que vale a pena a busca'.

Sim, uma das coisas que nos prendem à projeção são as promessas que são feitas para esta vida. Durante esta existência, a vida promete mundos e fundos para que fiquemos presos à ela. Mas, quanto sofrimento é necessário para que alcancemos uma migalha dessas promessas? Quantos desapontamentos acontecem na espera que elas sejam cumpridas?

Simplesmente ver isso acontecendo (o sofrimento necessário para se alcançar um mínimo de coisas) com você e com outros já deveria bastar para nos fazer tentar esvaziar a vida para alcançar o nada. Mas, como você disse, isso é difícil. Por quê? Porque não queremos trocar o certo pelo duvidoso.

Esvaziar essa vida é atirar-se num vazio. É abrir mão de tudo, é largar tudo aquilo no qual se está preso durante toda a existência. Essa é a dificuldade: não queremos nos atirar neste vazio...

Por isso, como fala muito Joaquim, é preciso ousar. Esvaziar a vida é um ato de ousadia, um ato que vai além dos padrões normais. Através da normalidade não se consegue esvaziar-se a existência do tudo para poder chegar ao nada.

Para se atingir o nada é preciso arriscar alto... Mas, não é isso que fazemos: no cassino da vida preferimos jogar baixo, trocar seis por meia dúzia, ou seja, não correr muitos riscos. Vou explicar melhor esta figura.

Não sei o quanto vocês conhecem sobre a roleta dos cassinos, mas me permitam, para aqueles que nada conhecem, mostrar como elas funcionam para ficar clara a figura que fiz.

Para apostar num jogo de roleta podemos fazê-lo de diversas formas. De acordo com a forma que se arrisca, a recompensa pode ser maior ou menor. Por exemplo: quem joga apenas num número, se acertar pode ganhar trinta e cinco vezes o que apostou; mas, pode-se apostar apenas na cor (preto ou vermelho) ou no par ou ímpar. Quem faz esta última aposta, se ganha, recebe apenas uma vez o que postou.

Este sistema premia aqueles que se arriscam mais. Quem joga no número simples tem 35 chances de perder, enquanto quem aposta nos grupos tem cinqüenta por cento de chance de perder apenas. Ou seja, quem ousa mais, ganha mais; quem ousa menos, ganha menos...

Na roleta da vida é a mesma coisa: quem ousa libertar-se de mais coisas recebe mais; quem não se arrisca muito, ou seja, ainda mantém verdades e desejos humanos esperando que eles possam trazer um mínimo de esperança de felicidade na projeção, recebe menos...

Mas, se arriscássemos pelos menos esses cinqüenta por cento ainda obteríamos algum lucro. O problema é que adotamos um sistema de apostas onde não arriscamos nada. Esse sistema eu chamo de trocar seis por meia dúzia.

Ele se consiste em jogar nas duas possibilidades que pagam menos a mesma quantidade de fichas, para que não percamos de maneira alguma. Ou seja, jogamos a mesma quantidade de fichas no preto e no vermelho e assim, dê o que dê, saímos da rodada com o mesmo capital que entramos. É o que vulgarmente chamamos de acender uma vela para deus e outra para o diabo.

Vivemos insistindo que estamos buscando a existência espiritual, a tela, o nada, mas ainda nos prendemos a algumas coisas. Para alcançar o nada esvaziamos do tudo apenas aquilo que queremos abrir mão... Além disso, preenchemos o lugar do que esvaziamos com novas verdades... Ou seja, trocamos seis por meia dúzia. Tudo isso para não viver o vazio, o nada...

Desse jeito não há riscos. Mas, se não riscos, não há recompensa... Continuamos vivendo a vida da forma que você falou: achando que vale a pena esperar pelas promessas da vida, mesmo que essas promessas agora sejam outras...

Por isso falei em ousadia. É preciso ousar, arriscar-se a abrir mão de alguma coisa sem colocar nada no lugar. É preciso aprender a perder, a ter sofrimento, a não conquistar, a não ser elogiado sem sofrer. Mas isso é uma decisão de foro íntimo: só você pode tomá-la...

Você pode ouvir falar de milhares de formas de despossuir, de libertar-se do mundo, de ser livre, mas se não decidir o que quer, nada conseguirá. Primeiro, decida o que quer para você, segundo, arrisque alto no esvaziar a vida: só assim pode ganhar alguma coisa.

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