Choque de realidade

Deus - o homem morcego

Tem uma coisa que não sei se ainda entendemos direito: a vida é completamente apática. Ela é completamente desprovida de qualquer emoção... Os acontecimentos apenas acontecem, mas não trazem consigo nenhuma emoção.

Se isso não fosse verdade, como poderiam duas pessoas participando de um mesmo acontecimento ter emoções diferentes? Se a emoção fizesse parte da vida, como poderia alguém sentir diferente do que a vida diria que deve ser sentido?

A emoção não está na vida: ela está dentro de cada um. Cada um que participa de um acontecimento da vida escolhe, além de uma descrição para o acontecimento, uma emoção para vivenciá-la.

Se o acontecimento nos faz mal, não foi a vida que nos fez mal, mas nós mesmos que escolhemos o mal para viver aquele momento. Se o acontecimento nos faz bem, não foi a vida que nos fez bem, mas fomos nós que escolhemos bem para viver aquele momento.

Isso é fundamental para quem quer sair do tudo e atingir o nada. Isso porque esse tudo que precisa transformar-se em nada não está na vida, mas em nós mesmos. Para podermos nos libertar destas emoções pergunto: porque escolhemos este ou aquele sentimento? O que nos leva a viver como bem ou mal um acontecimento?

A emoção que cada um vivencia num acontecimento está diretamente ligada aos desejos. São os desejos que estão em nós que ditam se tal momento será vivido como bem ou como mal.

Todo o lado emocional que vivemos durante os acontecimentos é decidido pelo confronto entre os desejos e a descrição que a mente cria do momento. Se a descrição do momento satisfaz um desejo, vivemos o bem; se a descrição não satisfaz este desejo, vivemos o mal.

Portanto, nosso estado emocional não está na vida, mas dentro de cada um e ele está ligado diretamente à capacidade de desejar... Mas, vamos mais além: de onde surgem os desejos?

Porque você quer um bem material? Para que você quer estar em paz? Porque deseja que a situação ocorra de tal jeito? Enfim, porque você quer o que quer e não quer o que não quer? Por causa de suas verdades...

Sempre que existe uma verdade ela torna-se num código de lei, numa regra. Comer de boca fechada é certo; correr faz bem para a saúde; em determinados lugares só se pode ir de terno e gravata; gritar com os outros é falta de educação.

Isso são verdades de cada um, verdades individuais. O total destas verdades cria um código legal que baliza a sua vida. É porque achamos errado comer de boca aberta que queremos que os outros comam de boca fechada; é por achar que correr faz bem para a saúde que queremos que nós e todos corramos; é por achar que se deve ir de terno e gravata que criticamos quem não vai; é por achar falta de educação gritar com os outros que acusamos o outro de sem educação...

São as verdades, que usamos como leis, que nos fazem ter o desejo de viver o que se acha certo e de não viver o que se acha errado. Ora, se o choque da realidade descrita pela mente com o desejo é que cria a emoção que vivemos e se o desejo depende da verdade, posso dizer que são estas leis que nos fazem sofrer ou ter prazer.

Quando a lei é acatada por mim ou pelo próximo, vivo a emoção de bom; quando a lei é desacatada, vivo a emoção de mal.

A partir de tudo isso, posso dizer que para se atingir o nada é preciso se libertar das leis, do achar que as verdades tem poder de legislar sobre a vida, para poder se viver a equanimidade. Quando não houver mais verdades que gerem desejos, não haverá emoções a serem vividas...

Por isso declaro também que, além de ateu, sou anarquista, graças a Deus. Ou seja, vivo para me libertar de todas as leis (verdades) que me levem a ter alguma emoção.

Mas, eu disse de todas, inclusive a lei que diga que eu tenho que me libertar de todas as leis...

Ser anarquista não é ser contrário às leis ou estabelecer leis anárquicas. Ser anarquista é não estar nem aí para o tem e viver apenas o que está acontecendo.

Para ser anárquico eu não preciso comer de boca aberta. Posso comer de boca fechada sem achar que isso é o certo a ser feito.

Para ser anárquico não preciso deixar de fazer exercícios físicos. Basta não achar que tenho que fazê-los.

Para ser anárquico não preciso ir de bermuda ao trabalho, mas ir de terno e gravata porque é esta a roupa que estou usando.

Para ser anárquico não preciso gritar com ninguém. Basta gritar comigo mesmo que falar em voz alta faz parte da vida...

O anárquico não cria regras anarquistas, mas vive a vida sem ter leis. Se ele criar leis anárquicas, ou seja, contrárias ao que está pré-estabelecido, e segui-las, não estará sendo anárquico, mas bem comportado, pois segue um padrão.

Quando se atinge o verdadeiro estado anárquico, ou seja, vive-se a vida sem deixar que os códigos de leis criem emoções, se atingiu o nada, o vazio, a equanimidade...