O nobre caminho

Despossuir

“Aqui, monges, está a Nobre Verdade do fim do sofrimento. É a dissolução e o término dos desejos sem deixar vestígios. É soltar, abrir mão, libertar-se, acabar com os desejos”. (Samyutta Nikaya V 20)

Buda afirma que o caminho para o fim do sofrimento é despossuir os objetos, as pessoas e os acontecimentos. É preciso libertar-se do individualismo para que o ser possa alcançar a felicidade de participar do Todo Universal.

Cristo também falou a mesma coisa:

“Certa vez um homem chegou perto de Jesus e perguntou: Mestre, o que devo fazer de bom para conseguir a vida eterna? Porque você me pergunta a respeito do que é bom? – respondeu Jesus. Bom só existe um. Se você quer entrar na vida eterna, guarde os mandamentos. Que mandamentos? – perguntou ele. Jesus respondeu: Não mate, não cometa adultério, não roube, não acuse os outros com falsidade, respeite o seu pai e a sua mãe e ame os outros como você ama a você mesmo. Tenho obedecido a todos esses mandamentos – respondeu o moço. Que mais ainda devo fazer? Jesus respondeu: Se você quer ser perfeito, vá, venda tudo o que tem e dê o dinheiro aos pobres e assim terá riquezas no céu. Depois venha e siga-me”. (Mateus – 19, 16-21)

Cristo nos ensinou que para sermos perfeitos é necessário que não possuamos bens. Esse ensinamento tem sido individualizado e, por isso, sua compreensão foi alterada.

Muitos afirmam que para poder alcançar a Deus o ser não deve ter nenhum bem material. No entanto, o próprio Mestre em outro ensinamento afirma que Deus dá a cada um de acordo com as suas obras, com o merecimento de cada um. Portanto, os bens materiais foram dados por Deus a cada um como fruto de um merecimento.

A casa, o carro, o emprego, as roupas, tudo que o ser humano detêm lhe foi dado pelo Pai como instrumento de sua elevação (merecimento). Dar o que lhe foi presenteado é ingratidão, desfazer-se de algo que Deus julga necessário para a evolução é dificultar a própria missão.

“881. O direito de viver dá ao homem o direito de ajuntar o que necessitar para viver e repousar, quando não puder mais trabalhar? Sim, mas deve fazê-lo em família, como a abelha, por um trabalho honesto e não amontoar como um egoísta. Mesmo alguns animais lhe dão o exemplo da previdência”. (O Livro dos Espíritos)

Portanto, despossuir não é desfazer-se dos bens que Deus lhe confiou, mas essa ação deve ser executada de outras formas.

“Há homens insaciáveis e que acumulam sem proveito para ninguém, ou para satisfazer suas paixões. Crês que isso seja bem visto por Deus? Aquele que ao contrário amontoa por seu trabalho para ajudar seus semelhantes, pratica a lei de amor e caridade e seu trabalho é abençoado por Deus”. (O Livro dos Espíritos – pergunta 883b).

Por essa resposta da espiritualidade dada a Kardec podemos compreender o possuir: acumular para benefício próprio ou para satisfazer paixões individuais. A partir daí podemos entender que despossuir é acumular bens para benefício coletivo e não buscar satisfazer as paixões individuais com a posse.

Cristo não disse ao homem rico que ele devia vender todos os seus bens e com o resultado obtido ajudar os pobres. Disse que devia colocá-los à disposição de todos.

Aquele que, apesar de possuir uma propriedade individual a franquear para ser utilizado pela coletividade estará ajuntando bens em “família, como a abelha”. Todos os bens consignados à disposição do ser encarnado são, antes de tudo, instrumentos de uma prova de “universalismo”: Deus concede a posse temporária do bem ao ser para ver se ele universaliza esse instrumento ou o individualiza.

A casa não é do proprietário, mas Deus gerou a aparente propriedade para ver se o ser a universaliza, dando abrigo a quem precisar dele. As outras pessoas não podem ser possuídas sentimentalmente, mas são colocadas ao lado do ser para que ele a trate universalmente, ou seja, permita que ela tenha a sua independência. As verdades relativas que cada um tem devem ser universalizadas, não no sentido de serem impingidas aos outros, mas dando a cada um o direito de possuir as suas.

Despossuir é ter, mas não se imaginar como único a auferir os lucros.

Alguns já conseguem compartilhar as suas posses, mas ainda o fazem buscando satisfazer as suas paixões. Essa forma de agir ainda é possuir.

Buscar satisfazer as suas paixões é querer alcançar a satisfação individual, o prazer. Para que esse sentimento seja alcançado é necessário que o ser tenha seus conceitos individuais satisfeitos. Assim, possuir, além de individualizar a posse é querer determinar a ação dela.

Mesmo que o ser franqueie a sua casa para os necessitados, ainda continuará a possuindo enquanto se imaginar a causa primeira para a casa. O ser que imagina que pode construir, alterar, embelezar ou destruir uma casa ao seu bel prazer a possui. Despossuir a casa é entregar a Deus a posse dela. Assim, todas as ações que a casa sofra não foram feitas pelo ser, mas por Deus (Causa Primeira de todas as coisas) utilizando-se do ser para tanto.

Isso é despossuir realmente. Enquanto o ser imaginar que ele pode exercer ação sobre os objetos, acontecimentos ou pessoas, estará possuindo-os. Para despossui-los é necessário entregar o comando das ações ao Pai. Se o ser conseguiu pintar uma parede foi porque o verdadeiro Proprietário de tudo assim determinou. O ser é apenas um instrumento que o Proprietário utilizou.

Esta forma não satisfaz os desejos do ser, mas o leva a penetrar na felicidade universal. Se houve o “desejo” de embelezar uma casa, o ser que possui a casa sofrerá enquanto não conseguir fazer da sua forma. Despossuindo a casa, o ser sabe que o desejo foi dado por Deus e que a realização também dependerá Dele. Dessa forma, não se angustia enquanto não realiza o desejado e alcança a felicidade plena.

Quando o ser ainda possui, mesmo que consiga praticar a reforma, o sofrimento será inevitável, pois o prazer é efêmero e fugaz. Mal o ser termine a reforma logo terá outra intuição para desejar algo a mais e perderá a felicidade com o que já conseguiu. Esse novo desejo é dado por Deus para aqueles que se acham capazes de desejar individualmente, ao invés de ser feliz com o que o Pai lhe dá.

Despossuir uma coisa é amá-la da forma que se encontra. Viver sem posses é amar tudo o que se possui, não egoisticamente, mas dentro da família universal, “como a abelha”.

“Não há propriedade legítima, senão aquela que foi adquirida sem prejuízo para outrem” (O Livro dos Espíritos – pergunta 884)