Vida humana

O ter

Vocês já foram a centros espíritas e com certeza já presenciaram diversos encerramentos de palestras. Neste momento o palestrante assume um ar de sublimação e pede a Deus que ajude os necessitados. Pede que visite os orfanatos e ajude as crianças sem lar; pede que visite os asilos e ajude os velhos abandonados; pede que ampare os desempregados, os doentes e os que moram na rua acabando com seus sofrimentos. Isso vocês já viram, mas já ouviram algum deles pedir a Deus que ajude quem tem casa, emprego, saúde e um bom salário? Não. Por que nunca ouviram isso? Porque como humano que são, os palestrantes acham que quem tem não precisa da ajuda de Deus...

Por mais espiritualizados que sejam os seres humanos só vêem problemas na carência e não na abastança. Mas, o ter também é prova para o espírito quando encarnado.

“814. Por que Deus a uns concedeu as riquezas e o poder, e a outros, a miséria? Para experimentá-los de modos diferentes. Além disso, como sabeis, essas provas foram escolhidas pelos próprios Espíritos, que nelas, entretanto, sucumbem com freqüência”.

“815. Qual das duas provas é mais terrível para o homem, a da desgraça ou da riqueza? São-no tanto uma quanto outra. A miséria provoca as queixas contra a Providência, a riqueza incita a todos os excessos”.

Ter é prova como o não ter. Aliás, às vezes provação mais complicada que não ter. Isso acontece quando não se leva em conta a existência de uma encarnação.

“816. Estando o rico sujeito a maiores tentações, também não dispõe, por outro lado, de mais meios de fazer o bem? Mas, é justamente o que nem sempre faz. Torna-se egoísta, orgulhoso e insaciável. Com a riqueza, suas necessidades aumentam e ele nunca julga possuir o bastante para si mesmo”.

O uso dos bens terrenos é um direito de todos os homens (pergunta 711). Mas, quando se analisa o ter como elemento da vicissitude que serve como provação do espírito durante a encarnação se compreende que ele serve “para instigar o homem ao cumprimento da sua missão e para experimentá-lo por meio da tentação” (Pergunta 712).

Esta tentação está na forma como se goza os bens que são possuídos. Tudo que existe na vida de um ser humanizado é apenas instrumento que servirá para que ele opte entre gozá-los de uma forma material (ter o prazer de ter) ou espiritual (equânime).

Veja como Kardec compreendeu esta questão:

“Se o homem só fosse instigado a usar dos bens terrenos pela utilidade que têm, sua indiferença houvera talvez comprometido a harmonia do Universo. Deus imprimiu a esse uso o atrativo do prazer, porque assim é o homem impelido ao cumprimento dos desígnios providenciais. Mas, além disso, dando àquele uso esse atrativo, quis Deus também experimentar o homem por meio da tentação, que o arrasta para o abuso, de que deve a razão defendê-lo”. (Pergunta 712 a)

A razão, ou seja, a sua forma de ver os acontecimentos do mundo é que pode lhe ajudar na elevação espiritual. Pensando como todo ser humanizado pensa, ou seja, achando que ter é o importante, cede à tentação e imagina que quem já tem não precisa da ajuda de Deus. É neste erro que incorrem os palestrantes que falamos.

“714. Que se deve pensar do homem que procura nos excesso de todo gênero o requinte dos gozos? Pobre criatura! Mais digna é de lástima que de inveja, pois bem perto está da morte”.

Quem vive preso ao gozo do ter não consegue unir-se a Deus, mas aquele que sabe que esta sua condição é apenas uma das pontas das vicissitudes que vivencia durante a encarnação, consegue superar estes gozos e vive em harmonia amorosa com o Pai. Quem compreende isso, então, sabe que aquele que tem precisa de muita ajuda para não sucumbir às tentações. Por isso os palestrantes deveriam pedir a Deus que os ajudasse também e não só aos necessitados humanamente falando.

Só para encerrar o assunto ter, quando falo em bens materiais não estou me referindo apenas a objetos, mas a todas as possessões: moral (estar certo) e sentimental (ser amado). Todos os que recebem elogios e são aprovados pela humanidade são pessoas que possuem bens terrestres, mesmo que eles sejam imateriais.