Amor universal

Pelo amor ou pela dor

“Não partilho da opinião de meu contemporâneo, Bernard Shaw, de que os seres humanos só conseguiriam algo de bom se pudessem viver até os trezentos anos de idade. Um prolongamento da vida de nada adiantaria, a menos que muitas outras mudanças fundamentais fossem feitas nas condições da vida”. (Sigmund Freud)

Obras completas de Sigmund Freud, Volume XXIII, Cap. III – MOISÉS, O SEU POVO E A RELIGIÃO MONOTEÍSTA, PARTE I – NOTA PREAMBULAR I)

1 - Psicologia e Espiritologia

A psicologia é uma ciência que busca proporcionar uma melhor qualidade de vida aos seres humanos. Como melhor qualidade de vida, entende-se a quantidade de momentos de felicidade que um ser humano sinta durante a sua vida.

Para isso, a psicologia busca alterar a visão que um ser humano possui sobre as coisas que lhe fazem sofrer, alterando o seu estado de espírito. Da mesma forma, as doutrinas religiosas (espiritologia) buscam transmitir ensinamentos que façam os seres humanizados compreenderem a ação de Deus no planeta para que possam viver a sua existência em um estado de felicidade. Isso porque o entendimento da ação de Deus altera o sentido que o ser humanizado dá as coisas do mundo material e desta alteração pode surgir a vivência da felicidade.

Para conseguirem este objetivo comum, tanto a psicologia quanto a espiritologia trabalham elementos imateriais: inteligência e raciocínio.

A felicidade de um espírito humanizado depende da sua capacidade de continuar a ser feliz durante os acontecimentos da vida, sem que para isso seja preciso alterá-los. Esta felicidade não depende do acontecimento em si, mas da compreensão que o ser humanizado alcance sobre os acontecimentos da vida através do raciocínio dos fatos. Enquanto o raciocínio de um ser humanizado contiver valores (conceitos) que afirmem que ele não alcançou a felicidade, ele não será feliz. Só quando seus valores afirmam que existe felicidade, ele torna-se feliz.

Tanto a psicologia quanto a espiritologia buscam, portanto, alterar os conceitos do ser humano, pois partem da certeza de que muitas vezes é impossível se alterar os acontecimentos para satisfazer ao ser humano.

Através de seus ensinamentos, as duas ciências dão ao ser humanizado subsídios para que ele aceite os acontecimentos sem ter pensamentos que criem a consciência de uma contrariedade. Aplicando-os acontece uma mudança no entendimento dos fatos (compreensão) e com isso o ser humano não mais alcança o sofrimento.

Ora, se as duas ciências possuem objetivos em comum e operam sobre os mesmos elementos para conseguirem o mesmo fim, é justo se prever que as duas deveriam trilhar o mesmo caminho. No entanto, não é isto que ocorre: A psicologia trabalha com os valores humanos enquanto que a espiritologia opera com os valores espirituais.

2 – A codificação dos ensinamentos

Sigmund Freud é considerado o pai da moderna psicologia, mas isto não quer dizer que a busca pela alteração dos valores do ser humano para que houvesse a vida com um estado de espírito de felicidade tenha se iniciado através dele. Durante todos os milênios de existência do homem sobre o planeta a filosofia procurou trazer os instrumentos para esta mudança. Desde os pensadores gregos até os dias de hoje, muitos procuraram compreender os caminhos que levam a esta felicidade constante.

A função de Freud foi a de criar normas e procedimentos que dessem a esta procura um caráter científico.

Da mesma forma, a espiritologia também teve um pai: Allan Kardec. Apesar disso, como na psicologia, desde que o ser humano passou a existir neste planeta, criaram-se correntes religiosas que procuraram trazer ensinamentos para que o ser humano vivesse em estado de felicidade, com os de Lao-Tsé, Krishna, Buda, Cristo, etc. Todos estes mestres trouxeram ensinamentos que devem ser usados por aqueles que querem viver esta vida com a felicidade que Deus tem prometido. No entanto, nenhum deles os tratou como ciência.

Allan Kardec com o seu O Livro dos Espíritos e as demais obras do Pentateuco Espírita foram as primeiras codificações científicas da busca da vivência da felicidade por parte do ser humano. No entanto, elas em si não podem ser consideradas como novidades neste sentido. Na verdade, os ensinamentos trazidos por Kardec contemplam todas as correntes dos mestres que viveram anteriormente. Desde os ensinamentos de Lao-Tsé até o amor ensinado por Cristo e vivido pelos santos, os mestres enviados por Deus transmitiram os ensinamentos necessários para a geração da espiritologia.

Assim como Freud, Kardec apenas reuniu todos estes ensinamentos e criou normas e procedimentos que desse o caráter científico aos mesmos, Kardec o fez com os ensinamentos da espiritologia.

Os dois, portanto, são os codificadores, ou seja, os pais da psicologia e da espiritologia.

3 – As correntes diversas

Como toda ciência que se preza, tanto a psicologia quanto a espiritologia possuem correntes diversas, ou seja, caminhos diferentes para se atingir ao mesmo objetivo.

No texto em epígrafe neste trabalho, podemos ver que à época de Freud havia duas correntes que divergiam sobre os caminhos da felicidade na formação da psicologia. Para Freud a felicidade deveria ser alcançada através de mudanças fundamentais que ocorressem durante a vida, enquanto que para Shaw ela só seria alcançada pela longevidade do ser humanizado.

Da mesma forma a espiritologia codificada por Kardec ensinou que existem duas formas de se alcançar a elevação espiritual (felicidade): pelo amor ou pela dor. Estas duas formas são defendidas por correntes ideológicas diferentes dentro da ciência espiritologia, como veremos.

4 – A felicidade alcançada pela dor

Quando os valores do ser humanizado são contrariados ele se torna infeliz. Uma das formas de agir neste caso é a reação contra as causas da contrariedade para poder voltar a sua felicidade.

Se a contrariedade partiu de outro ser humano que possui valores diferentes do dele, o homem debate, discute e busca provar por todos os meios que está certo, tentando convencer o próximo a mudar seu ponto de vista. Se ela adveio de uma situação, o ser humano age no sentido de alterá-la. Nas duas situações, o ser humanizado tenta modificar o acontecimento para restaurar o seu estado de espírito feliz.

Ocorre que dificilmente o ser humano consegue mudar o próximo ou qualquer situação. Ele não compreende que não possui o poder de alterar as pessoas ou os acontecimentos ao seu prazer. Assim, o ser humanizado passa a vida sofrendo, pois as pessoas não mudam para o que ele acha certo nem os acontecimentos se modificam.

Esta forma de proceder ocorre muito mais durante o ímpeto da juventude, pois quanto mais o ser vivencia situações onde é contrariado, mais aumenta a sua compreensão de que não pode alterar as pessoas e os acontecimentos. Quando atinge determinada idade, que muitos chamam da razão, o ser humano desiste desta luta contra os fatores externos e não mais se deixa ferir (perder a felicidade) pelos valores do próximo ou pelos acontecimentos. É a partir desta constatação é que Shaw sugere que a felicidade só será alcançada quando o ser viver mais tempo.

Podemos chamar este processo de resignação. O ser humano não alcança a felicidade por alteração de seus valores, mas resigna-se a não reagir aos valores alheios para não sofrer. Este caminho leva à felicidade, pois não há mais a contrariedade, mas apenas depois de muito sofrimento.

Na espiritologia este processo ficou conhecido como ‘elevação espiritual pela dor’.

Na codificação científica de Kardec sobre a espiritologia – O Livro dos Espíritos, pergunta 132 – é dito que na vida humana (encarnação) precisa haver vicissitudes, ou seja, alternância de situações. Sendo assim, nenhuma existência humana pode ser vivida apenas com a satisfação dos desejos do ser humanizado.

Este mesmo ensinamento foi trazido por todos os mestres. Todos disseram que durante a vivência de uma encarnação o ser humanizado não pode vivenciar apenas momentos de satisfação. Cristo foi mais longe. Ele disse que a felicidade (Bem Aventurança) depende do ser humanizado ser caluniado e perseguido. Portanto, a existência da infelicidade é algo inexorável àquele que encarna.

Aquele que vive a elevação espiritual pela dor é o ser humanizado que se resigna a passar pelos momentos de sofrimentos de sua existência sem agir contra eles, buscando, assim, alcançar a felicidade prometida. Neste caso, assim como na teoria de Shaw, a felicidade também só é alcançada na maturidade da vida religiosa, ou seja, depois de muitas contrariedades.

As correntes que defendem este modo de proceder da espiritologia são a católica, a evangélica e até da espírita. Elas ensinam através da paixão de Cristo que os seres humanos devem sofrer seus momentos de contrariedade em silêncio (sem reagir contra eles) para serem aceitos no reino do céu.

5 – A felicidade alcançada pelo amor

Freud era contrário a Shaw. Ele achava que a felicidade podia ser obtida através de uma ação do ser humano sobre os acontecimentos para acabar com a sua contrariedade e não pela reação constante até atingir-se a resignação. Já que todas as contrariedades nascem de pensamentos diferenciados, Freud criou normas que explicam ao ser humano o comportamento alheio.

Conhecendo as bases do raciocínio dos outros, o ser humano pode compreendê-los e não mais necessitar da mudança deles para permanecer feliz. Começa, então, a procurar ser feliz independente das características dos outros. Esta é a mudança fundamental na condição de vida do ser humanizado que propõe a psicologia.

Freud explica os valores diferenciados que cada um possui através de normas científicas e leva o ser humanizado a compreender que ele não tem o poder de alterá-los e por isto deve aceitá-los da forma que são. A psicologia, portanto, age no sentido de dar ao ser humanizado a compreensão sobre o mundo em que vive para assim, deixe, de necessitar combatê-lo como pré-condição de sua felicidade.

O mesmo ensinamento é trazido pela corrente religiosa oriental (budismo, taoísmo, confucionismo, etc.) da espiritologia. Ao invés de resignarem-se com os acontecimentos, estas correntes incitam seus seguidores a reagir contra as situações dentro de si mesmo e não externamente.

Assim como a psicologia altera os padrões internos do ser humano para que não haja mais conflitos com os externos, as religiões orientais ensinam os seres humanos a buscar o seu próprio equilíbrio para não se ferir.

A ação de reforma interna para viver a felicidade foi chamada por Cristo de AMOR. A prática do amor ensinado por Cristo leva o ser humanizado a mais do que se resignar face às situações do mundo, mas amar a tudo, a Deus, a si e ao próximo, sempre, independente da situação.

Alcançar a felicidade pelo amor é agir internamente para gerar uma conscientização dos fatores internos (mudanças fundamentais nas condições de vida) que acabem com os sofrimentos.

6 – Alcançando a felicidade

Não importa por qual caminho o ser humanizado seguir, se o ser humanizado a amar a Deus acima de todas as coisas e ao próximo como a si mesmo alcançará o estado de felicidade. Resignando-se ou amando o próximo como a si mesmo, alcançará a felicidade, pois como disse Kardec, todos os espíritos um dia irão evoluir. A diferença está no caminho que tomará.

7 – Conclusão

A espiritologia e a psicologia são ciências irmãs, pois objetivam a mesma coisa. Apesar de trabalharem valores diferenciados, as duas objetivam a mesma coisa: levar o ser humanizado a vivenciar esta vida dentro de um estado de espírito de felicidade incondicional.

Da mesma forma, as duas correntes de cada uma delas também estão certas, pois tanto pela resignação alcançada com a velhice quanto com a ação de amar, os seres humanizados um dia alcançarão a felicidade.

As duas correntes e as duas ciências se baseiam em uma só premissa: existe um estado de felicidade completa. A diferença entre eles é o caminho que é fruto livre arbítrio que o espírito tem: ele pode escolher caminhar pelo amor ou pela dor.