A dinâmica do não sofrimento

A dinâmica do não sofrimento

Voltando, então, a nossa conversa original.

Vimos que o não-sofrimento trata-se de aprender a conviver com o sofrimento que aparece na vida sem deixá-lo nos fazer so-frer. Mas, qual a dinâmica para isso, ou seja, como fazemos para viver com dignidade o sofrimento?

O não-sofrimento só pode ser realizado dentro de nós mes-mos. Por isso, a sua dinâmica começa com a profunda imersão em si mesmo, nunca fora.

Não dá para aprender a vivenciar o não-sofrimento querendo mudar quem ou o que está fora. Não dá para aprender a viver o sofrimento com dignidade querendo sair de perto daquilo ou de quem lhe incomoda. O não-sofrimento não pode ser alcançado evitando-se a pessoa que nos causa sofrimento ou alterando aquilo que nos faz sofrer. Só há como colocar em prática o não-sofrimento olhando para dentro de si mesmo.

Participante: Já passei por uma situação onde cheguei à con-clusão de que não deveria sofrer por determinada pessoa porque ela não merecia meu sofrimento. Hoje ainda tenho este sofrimento de vez em quando, mas sinto que estou me amando e me respeitando mais...

É exatamente o que estou falando.

Como vinha falando, para chegar ao não-sofrimento é preciso olhar para dentro de si mesmo. Quando fizer isso, é preciso enfren-tar a si mesmo... É preciso guerrear consigo mesmo... Este é que é o grande problema...

O ser humanizado está acostumado a julgar e guerrear contra o externo achando que ele é o certo e que tudo que faz é o bom. Acontece que é exatamente ao contrário...

Só uma pessoa pode fazer você sofrer: você mesmo. Nin-guém mais tem condições de lhe fazer sofrer: só você...

Respondam uma coisa: se alguém chegar aqui e lhe acusar de algo e você não se sentir acusado, terá sido acusado? Não. Portanto, sentindo-se acusado não foi o outro que lhe acusou, mas você mesmo. Foi você que se acusou quando aceitou o que o ou-tro lhe disse como acusação...

Só você pode fazer qualquer coisa contra você mesmo... Pa-ra ilustrar o que estou dizendo vou contar uma história...

 Perto de Tóquio, no Japão, vivia um grande samurai já idoso que agora se dedicava a ensinar o zen-budismo aos jovens. Apesar de sua idade, corria a lenda de que ainda era capaz de derrotar qualquer adversário.

Certa tarde, um guerreiro - conhecido por sua total falta de escrúpulos - apareceu por ali. Era famoso por usar a técnica da provação: esperava que seu adversário fizesse o primeiro movimento e, dotado de uma inteligência privilegiada para reparar os er-ros cometidos, contra-atacava com velocidade fulmi-nante.

O jovem e impaciente guerreiro jamais havia perdido uma luta. Conhecendo a reputação do samurai, esta-va ali para derrotá-lo e aumentar sua fama. Todos os estudantes se manifestaram contra a ideia, mas o ve-lho aceitou o desafio.

Foram todos para a praça da cidade, e o jovem co-meçou a insultar o velho. Chutou algumas pedras em sua direção, cuspiu em seu rosto, gritou todos os insultos conhecidos - ofendendo, inclusive, seus ancestrais. Durante horas, fez tudo para provocá-lo, mas o velho permaneceu impassível. No final da tar-de, sentindo-se exausto e humilhado, o impetuoso guerreiro retirou-se.

Desapontados pelo fato que o mestre aceitara tantos insultos e provocações, os alunos perguntaram: "Como o senhor pode suportar com tanta indignida-de? Por que não usou sua espada, mesmo sabendo que podia perder a luta, ao invés de mostrar-se co-varde diante de todos nós?"

- Se alguém chega até você com um presente e você não o aceita, a quem pertence o presente?, pergun-tou o samurai.

- A quem tentou entregá-lo, respondeu um dos alu-nos.

- O mesmo vale para a inveja, a raiva e os insultos, disse o mestre. Quando não são aceitos continuam pertencendo a quem as carregava consigo.

Esse é o processo para se alcançar o não-sofrimento: não aceitar o sofrimento. Mas, para isso, é preciso não aceitar aquilo que digo que o outro está fazendo comigo... Esse é o grande pro-blema do não-sofrimento.